Tem constituído objecto de importantes trabalhos de estudo e investigação, mas também de controvérsia, a problemática da adopção do crioulo, ou uma das variantes do crioulo cabo-verdiano, como língua oficial de Cabo Verde a sua consequente utilização nas escolas e em todas as instituições e repartições burocrático-administrativas cabo-verdianas. Ainda que todos pareçam estar de acordo quanto à necessidade de preservar, estudar, desenvolver e valorizar a língua cabo-verdiana, nem todos tem a mesma opinião quanto à necessidade ou mesmo viabilidade da sua instituição como língua oficial de Cabo Verde. Se há quem entenda que a insistência na utilização da língua portuguesa no pais, independente desde 1975, equivale a uma recusa por parte dos que assim procedem em se libertarem definitivamente de uma mentalidade de colonizado, há por outro lado quem considere a língua portuguesa uma herança positiva da colonização, não só por razões de ordem prática como instrumento de comunicação a nivel nacional, mas também pela amplitude do espaço cultural de que a língua portuguesa é parte integrante, opondo assim argumentos de carácter histórico e pragmático às fundamentações nacionalistas da substituição radical e definitiva do português pelo crioulo.
Creio que continuaremos a discutir esta questão entre nós, até chegarmos finalmente a uma conclusão objectiva e isenta dos preconceitos, da carga subjectiva e de uma certa emotividade ainda à flor da pela que muitas vezes nos desvia dos nossos propósitos iniciais. Não me parece que a valorização e o desenvolvimento do crioulo e a sua introdução no currículo normal das escolas cabo-verdianas, com a padronização de uma das variantes, instrumentada em termos de alfabeto, gramática e dicionário e eventualmente a sua oficialização, tenha necessariamente que implicar a exclusão da língua portuguesa, cujo lugar e cujas funções dentro do quadro de comunicação linguística em Cabo Verde me parecem definir-se de forma cada vez mais clara. Concordo com a tese de Dulce Almada Duarte * quando afirma que o futuro linguístico de Cabo Verde e bilingue, em crioulo e português, em que a utilização das duas línguas processa em regime de reconhecimento mútuo e de acordo com as circunstâncias, não parecendo provável a substituição de uma pela outra, pelo menos a curto ou mesmo médio prazo, já que não temos a capacidade de prever o futuro em termos absolutos, mas tão somente de observar e especular a partir de dados e tendências que nos permitem alvitrar hipóteses e imaginar os possíveis cenários que se oferecerão as nossa opções linguísticas futuras.
Há sempre uma margem de espontaneidade na evolução das línguas e do seu papel numa comunidade ou numa sociedade, cujos efeitos a longo termo são imprevisíveis, para além de e sejam quais forem as decisões politicas tomadas nesse âmbito. Muito se tem feito em Cabo Verde depois da independência para prestigiar, dignificar e desenvolver a língua cabo-verdiana, e nesse sentido é notável o trabalho perseverante e abnegado de estudiosos e especialistas nesta área de investigação, como Artur Vieira, kauberdiano Dambará, Dulce Duarte, Luís Romano, Manuel Veiga, Kaká Brabosa, Francisco Fragoso, Manuel Gonçalves, e Tomé Varela, Dany Spínola, Luis Hoppfer Almada, Inês Brito,não só no plano de investigação teórica, como na instrumentalização da língua cabo-verdiana no sentido da sua padronização, como na sua utilização como língua literária.
Ao fim e ao cabo escritores como Artur Vieira, Luís Romano,Gabriel Mariano, Corsino Fortes, Manuel Veiga e Tomé Varela, Zizin Figueira, para não falar nos poetas-compositores como B.Léza, Manuel Novas, Jota Monte, e tantos outros que passam como anónimos ou que ninguem se lembra de os citar, ao utilizarem a língua cabo-verdiana – o primeiro na variante da Ilha Brava, o segundo na de Santo Antão e os os dois últimos na santiaguense – prosseguem na linha de Eugénio Tavares e Pedro Cardoso, os dois grandes percursores da valorização do crioulo e a quem Cabo Verde deve das mais belas paginas da sua literatura. Não cabe no âmbito deste artigo falar de forma mais exaustiva sobre a valiosa contribuição trazida neste domínio por investigadores como Baltazar Lopes da Silva, como o estudo “O Dialecto Crioulo de Cabo Verde”, uma referência fundamental e um marco decisivo na historia da língua cabo-verdiana , ou a contribuição de Kauberdiano Dambara, Luís Fragoso, Kaká Barbosa e outros no mesmo sentido, mas tão somente sublinhar a sua importância numa longa luta de afirmação da identidade cultural e dignificação da cultura e do homem cabo-verdiano ao longo da sua história. Essa preocupação não me parece excessiva, sobretudo quando se têm presentes as duvidas que muitos imigrantes cabo-verdianos jovens, de segunda geração, revelam quanto ``a identificação com as suas origens e algumas manifestações de depreciação ou mesmo rejeição muitas vezes verificadas entre eles, quando confrontam a cultura dos seus progenitores com a da sociedade em que se inserem ou se integram ou tentam inserir-se ou integrar-se. Um fenómeno complexo, de efeitos imprevisíveis por vezes e que tem certamente muito a ver com os problemas de inserção e de integração social com que diariamente lida a sociedade do pais de acolhimento. E’ nessa dualidade cultural que vivem os imigrantes de segunda geração e os conflitos que gera nem sempre são resolvidos ou abordados da melhor forma pelos seus sujeitos e pelos que tentam, muitas vezes por dever de oficio , solucioná-los.
Voltando a questão linguística, que não podemos naturalmente dissociar da questão social, as escolas portuguesas situadas em bairros de forte incidência populacional cabo-verdiana, defrontam-se forçosamente com a situação de bilinguismo entre os seus alunos de origem cabo-verdiana que coloca os professores que nelas ensinam perante a necessidade de desenvolver estratégias e eventualmente adoptar uma metodologia diferente no ensino da língua portuguesa a estes alunos, que no seu ambiente familiar e no meio onde habitualmente vivem falam o crioulo e não o português. Naturalmente o grau de domínio da língua portuguesa, a sua língua de comunicação oral e escrita com os professores afectará o progresso escolar desses alunos nas outras disciplinas , pois é a língua que veicula todo processo de ensino-aprendizagem das diferentes matérias que constituem o seu currículo escolar. Há situações em que as dificuldades sentidas pelos alunos são transitórias, pois a imersão na língua portuguesa pelo convívio leva-os rapidamente a dominar esta língua, mesmo que continue a falar o crioulo em casa ou com os seus pares da mesma origem. Estas são as situações que coincidem com uma inserção social bem sucedida dos filhos de imigrantes cabo-verdianos. Há porem casos em que essa inserção não se faz e os imigrantes são arrastados pelas circunstâncias para um processo de guetização e isolamento e ao desenvolvimento de uma cultura de gueto que, preservando embora hábitos e costumes do pais de origem nos imigrantes de primeira geração, vai desenvolvendo paralelamente uma nova forma de estar que se afasta do estilo de vida dos pais e avós, mas tão pouco se integra na sociedade envolvente. E’ nessa zona que se geram grupos e comportamentos em conflito tanto com a restante sociedade, como com o seu próprio meio que frequentemente resvalam para a marginalidade legal.
As escolas só por si não conseguirão superar esses problemas se a questão da inserção social dos alunos filhos de imigrantes não se resolver fora da escola., portanto na comunidade, na família, na sociedade. Todos sabemos que as escolas reflectem como espelhos os conflitos das comunidades e da sociedade em que se inserem. Mas o que se passa nelas é fundamental para que se realize uma integração harmoniosa e eficaz dos imigrantes, e a cooperação entre a comunidade, as famílias e os professores é, naturalmente, indispensável para isso. E é importante que se tenha em conta a opinião dos pais, e de forma muito particular das mães tratando-se de pessoas oriundas de Cabo Verde, pelo peso da sua acção junto da família, evitando o erro em que muitas vezes se cai ao subestimar os pontos de vista e a experiência de pessoas que por terem fraca ou nenhuma escolaridade são classificadas como “ignorantes”. Ignorantes, é certo, de coisas que se aprendem nas escolas, mas experientes em muito mais, sobretudo naquilo que é a luta pela vida. Isto, sem demagogia nem paternalismo. Simples factos da vida. Quero com isso dizer que quando, por exemplo, uma dessas mães diz, numa reunião da Escola com os Pais e Encarregados de Educação de filhos de imigrantes, como já uma vez aconteceu, que “manda o seu filho para a escola para aprender a falar e a escrever português e não crioulo, porque crioulo já sabe, aprende-o em casa” , vale a pena ponderar muito a sério o que leva aquela senhora a insistir de forma tão enérgica nesta questão. Isto, sem desvirtuar a importância do crioulo e o interesse e a necessidade do seu estudo ou do seu ensino nas escolas. Neste caso, quanto a mim, importaria saber em que condições e a que níveis se poderá ou deverá ensinar o crioulo.
* Dulce Almada Duarte, - “Bilinguismo ou Diglossia?”. Praia, 1998