sexta-feira, 7 de abril de 2006

Vantagens das Desvantagens

Não faço o elogio da pobreza para eleger qualidades ou virtudes que nela se geram. É preciso perguntar a quem vive nas mais precárias condições de vida qual a sua opinião, antes de termos quaisquer veleidades na matéria. Como aquela mulher que vive lá para os lados da Chacra, ilha de Santiago, tem uma filha pequena para criar, sozinha, e se levanta cedo para sair à procura de algo que lhe dê para ganhar a refeição do dia quando regressa a casa ao fim da tarde. Juntando lenha para vender, por exemplo, ou carregando pedras para qualquer obra. Não tem nada de garantido, nada de seguro. Subsídio de desemprego, pensão de reforma um dia? Não brinquem. Isto sem lamechices: simples factos da vida, factos do dia a dia.

Posto isto, vou ao que queria dizer.
Alguém oriundo de uma outra ex-colónia portuguesa disse-me uma vez:
“A vossa sorte em Cabo Verde é terem uma terra pobre”.

A sua conclusão baseava-se no raciocínio de que em Cabo Verde, pela sua escassez crónica de recursos naturais, nunca foi possível implantar um sistema de exploração que desse lugar ao tipo de sociedade que se criou nas outras colónias. Como as roças de S.Tomé, por exemplo. Ou as grandes plantações de Angola e Moçambique. Ou minas de diamante, ou petróleo. Essas fontes de riqueza foram pólos de atracção para uma corrente migratória de colonos a quem foram dadas condições muito especiais como forma de os atrair e fixar, enquanto, para assegurar esse estatuto, mantiveram as populações autóctones à margem da sociedade que foram criando e desenvolvendo. Não só as mantiveram à margem como lhes retiraram a sua dignidade como seres humanos pela opressão social e pelo desprezo, impondo-lhes um tratamento racista e humilhante. Qualquer colono ganhava automaticamente um estatuto de classe favorecida, enquanto às populações nativas foi imposto o regime de indigenato e o respectivo estatuto a que equivalia a restrição total dos direitos mais elementares. Os cabo-verdianos, tendo embora outros problemas, disso se livraram.
No caso de São Tomé, este território seguiu até um determinado momento da sua história um percurso semelhante ao de Cabo Verde e a parte africana da sua população conheceu uma relativa tranquilidade e liberdade de acção, e mesmo um certo desafogo, e o relacionamento com os poucos colonos dava-se numa base de mútua aceitação e reconhecimento. A alteração do sistema de produção com a implantação de roças veio alterar profundamente a vida da população de São Tomé. Apenas um exíguo número de famílias são-tomenses era detentor de terras. Instituiu-se em São Tome um regime de monocultura em que se explorava a fundamentalmente a produção de cacau e, em menor escala, café. A exploração destes dois grandes recursos agrários estava nas mãos de empresas sedeadas em Portugal ou de alguns empresários individuais. Os naturais de São Tomé recusaram-se a trabalhar nas roças, pelo que as mesmas passaram a recrutar trabalhadores de outras colónias, como Angola e Moçambique, mas principalmente de Cabo Verde. O sistema de exploração e o recrutamento de mão-de-obra teve naturalmente o apoio da administração colonial. Permitia por um lado, resolver o problema de mão-de-obra para a exploração das roças e, por outro lado, era uma forma de solucionar outros problemas como o das crises cíclicas provocadas pelas secas em Cabo Verde. As condições de trabalho eram degradantes, a forma como os trabalhadores eram transportados para São Tomé eram aviltantes, mas a lógica da Administração, lógica a que os próprios trabalhadores não tinham outra alternativa senão submeter-se numa terrível forma de chantagem, era a de que, ao menos assim, teriam a sua sobrevivência assegurada.

A implantação de roças imprimiu um rumo à sociedade de São Tomé diferente daquele que em Cabo Verde, por força das circunstâncias se seguiu, o que fez com as duas colónias tenham tido, a partir dai, percursos diferentes. Mesmo assim, em São Tomé, o tipo de convívio entre os colonos e a população africana sempre se diferenciou do modelo de colonização adoptado nos territórios de Angola e Moçambique. Uma simples amostragem a partir do número de africanos que frequentavam as escolas secundárias naquelas três antigas colónias portuguesas será suficiente para definir a situação naqueles territórios na época colonial, diminuindo essa frequência de São Tomé para Angola e de forma dramática de Angola para Moçambique, onde essa frequência era quase nula, sobretudo nas grandes capitais, Lourenço Marques, hoje Maputo, e Beira. Não é por acaso que precisamente Moçambique foi, das antigas colónias portuguesas, o país que teve que lutar com maior dificuldade em quadros depois da independência. É verdade que nos anos que precederam a independência daquela antiga colónia portuguesa houve uma certa alteração nesse estado de coisas, motivada pela pressão da comunidade internacional sobre o governo português, mas tais medidas além de insuficientes chegaram já demasiado tarde.

Em Cabo Verde tudo se passou de forma diferente. Depois da abolição da escravatura e apesar da persistência em conservar de uma forma ou de outra as suas prerrogativas de classe dominante, a progressiva degradação do poder económico dos ex-senhores foi gradualmente retirando-lhes a capacidade de exercer um domínio real sobre a vida dos ex-escravos, apesar da persistência de uma postura de classe feita de gestos e atitudes. A falta de recursos em geral e o efeito devastador das secas sucessivas acabariam por aproximar uns e outros numa luta pela sobrevivência colectiva, desencorajando por outro lado a colonização massiva. Não se ia para Cabo Verde: saia-se de Cabo Verde, para procurar vida noutros lugares. Saia quem pudesse.

A exiguidade de recursos conduziu ao longo dos anos a uma vivência em comum, a uma busca constante de formas não só de conservação dos poucos recursos como de estratégias de superação das crises que cíclica e inevitavelmente assolavam as ilhas, condicionando as expectativas dos seus habitantes e, enquanto Cabo Verde foi colónia portuguesa, cabia ao Estado Português a responsabilidade de garantir a sobrevivência da população de um território que era considerado para todos os efeitos território português. Esse suporte não impediu que morressem milhares de pessoas à fome nos períodos mais críticos da sua historia como colónia, além da fome crónica e toda a espécie de carências que afectavam largos sectores da população: esse rosto familiar da miséria que o arquipélago se habituou a olhar como uma espécie de fatalidade.

Assumir a independência de um pais nessas condições podia ser visto como um acto de irresponsabilidade da parte de quem, aparentemente, nada tinha para dar em troca à população a não ser a possibilidade de autodeterminação. Nada mais senão a sua independência, para que pudesse livremente decidir sobre o seu destino. Mas que destino, sem recursos que pudessem assegurar uma autonomia mínima - de subsistência como ponto de partida - a não ser que contasse indefinidamente com a solidariedade internacional? Esta alternativa equivalia, para muitos, a substituir uma forma de dependência por outra, neste caso, da dependência de Portugal pela dependência da generosidade de outros países e organizações humanitárias internacionais. Essa era a responsabilidade dos novos dirigentes de Cabo Verde como Estado.

Apesar dos erros cometidos durante os primeiros anos de gestão dessa independência, penso que a sua assunção, longe de ter sido um acto de irresponsabilidade foi um acto de convicção e de confiança na capacidade do próprio povo cabo-verdiano para criar e desenvolver condições de viabilização da sua autonomia. Essa convicção e essa confiança, apesar de todas as dificuldades e dos erros ( muitos deles possivelmente evitáveis ) tiveram um impacte positivo na reacção das populações dentro e fora do país e na imagem que Cabo Verde conseguiu projectar junto da comunidade internacional. Não podemos subestimar a importância dessa projecção, cujos efeitos não deixam de ser mutuamente estimulantes. Para além de todas as críticas que se possam fazer ao regime sob o qual foram conduzidos os destinos de Cabo Verde durante as primeiras duas décadas da sua independência, é difícil não reconhecer o mérito dessa convicção, dessa confiança e dos seus efeitos. Por certo, mesmo aqueles cabo-verdianos que, sobretudo por razões de ordem politica e ideológica não aderiam à independência nas condições em que ela ocorreu, considerando-a como um acto de cumplicidade entre as forças politicas no poder em Portugal e um partido em Cabo Verde assumido, arbitrariamente segundo eles, como o único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, não deixam, se forem efectivamente cabo-verdianos, de sentir-se afectados de forma positiva e de regozijar-se, todas as vezes que a imagem de Cabo Verde no exterior se projecta de forma positiva. Este facto, por si, não deixa de reflectir a consciência nacional do que consideramos ser o povo cabo-verdiano. É essa consciência nacional que, quanto a nós, explica e justifica a luta pela independência de um povo. As opções politicas que cada povo assume na gestão da sua vida como nação independente são outro problema.

De qualquer forma, é a ele que cabe decidir, entre as diferentes opções que se lhe oferecem.

Viriato de Barros